CONFLITO E DISSENSO NO ESPAÇO PÚBLICO
CONTEXTO TEÓRICO:
Uma das principais reflexões críticas acerca do cotidiano da vida urbana contemporânea, tematizada em diferentes campos, refere-se ao processo denominado "espetacularização urbana", em alusão às nefastas conseqüências do processo de privatização dos espaços públicos pela especulação imobiliária e a conseqüente gentrificação das cidades contemporâneas. Em tais processos, o ambiente urbano tende a se caracterizar como uma cenografia e a experiência urbana cotidiana, por sua vez, então, acaba resumida à utilização e circulação disciplinadas por princípios segregatórios, conservadores e despolitizadores que conferem um sentido mercadológico, turístico e consumista ao seu modo de operação.
De tão consolidado esse processo, muitos de seus efeitos acabam por tornar-se a própria lógica organizativa da dinâmica urbana, atuando de modo estrutural e não mais apenas circunstancial, na medida em que, desvinculam-se de sua justificativa contextual para generalizarem-se como um padrão cultural de pensamento, comportamento e legislação.
Tome-se, por exemplo, um processo correlato conhecido como turistificação das cidades que, fortemente ancorado na lógica de consumo típica dos contextos espetacularizados, generalizou-se como um padrão interativo entre pessoas e lugares, que opera, inclusive, em circunstâncias sem qualquer apelo propriamente turístico.
Uma lógica interativa consumista ou "turistizada" que faz parte do crescente processo de espetacularização da cidade, da cultura e do próprio corpo e que, de tão consolidada, já se manifesta amplamente impregnada na formulação dos discursos e comportamentos que permeiam e, inclusive, fundamentam desde os planejamentos e ações da administração pública das cidades até as próprias relações mais íntimas de seus habitantes.
O aspecto crucial dessa configuração contemporânea das cidades é o do empobrecimento da experiência urbana dos seus habitantes, cujo espaço de participação civil, de produção criativa e vivência afetiva não apenas está cada vez mais restrito quanto às suas oportunidades de ocorrência, mas, inclusive, qualitativamente comprometido quanto às suas possibilidades de complexificação.
Embora esse problema já venha sendo focalizado pelos discursos acadêmicos e da administração pública das cidades, ainda carece de enfrentamento apropriado ao necessário redimensionamento das responsabilidades e implicações, de modo, inclusive, a combater uma certa tendência conciliatória das abordagens que, ao pregar a tese da coexistência pacífica entre diferentes "identidades" acaba por destiná-los cada qual ao "seu espaço próprio" de convivência com iguais, escondendo os inevitáveis conflitos de interesse e instaurando equilíbrios duvidosos.
O espaço público, se reconhecido, por excelência, como locus do conflito, inclui agentes e mobiliza agenciamentos muito mais diversos e contraditórios do que se desejaria ou se costuma identificar. Enquanto a arte, se reconhecida como locus da experiência, promove percepções espaço-temporais muito mais complexas do que sugerem os efeitos moralizadores e individualistas normalmente atribuídos à contemplação cenográfica.
Os atuais projetos urbanos contemporâneos, ditos de revitalização urbana, estão sendo realizados no mundo inteiro segundo a mesma estratégia genérica, homogeneizadora e consensual, e transformam os espaços públicos em espaços destituídos de seus conflitos desacordos e desentendimentos inerentes, tornando-os espaços apolíticos. Pensando o desentendimento como categoria fundamental do político, estes espaços públicos transformados em imagens espetaculares são a própria negação do político, uma vez que são os conflitos e dissensos que caracterizam a vita activa ou a vida pública stricto sensu.
Enquanto a construção de consensos busca reduzir os conflitos e é uma forma ativa de despolitização, o desentendimento, ou a construção de dissensos, seria uma forma de resistência. É precisamente essa configuração consensual que solicita a intervenção da arte como fator de explicitação desses conflitos e potência questionadora de consensos estabelecidos.
O espaço público e a experiência artística constituem, assim, aspectos da vida humana cuja dinâmica tanto promove quanto resulta dos modos de articulação entre corpo e os ambientes urbanos, fazendo da estética urbana um tema de interesse crescente por parte dos diferentes campos do conhecimento e áreas de atuação pública, que vêem lhe conferindo diferentes enquadramentos de abordagem e espaços de manifestação. Do Urbanismo às Artes, da Cidade ao Corpo, das políticas públicas às práticas de subjetivação, passando pelas organizações coletivas de ativismo político e cultural, muitos são os focos de preocupação teórica acerca do assunto. Seu caráter multifacetário é, justamente, desafiador de estratégias de enfrentamento alternativas aos modos habituais de condução e indicam a necessidade de uma abordagem interdisciplinar capaz de articular os diversos aspectos do problema.
Partindo da premissa de que a redução da ação urbana ou o empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo leva a um empobrecimento da corporalidade, entendemos que o redesenho das relações entre corpo e cidade pode nos mostrar alguns caminhos alternativos, desvios, linhas de fuga, micro-políticas ou ações moleculares de resistência ao processo molar de espetacularização da cidade, da arte e do próprio corpo e, assim, apontar outras formas de reflexão, interação e de intervenção nas artes e nas cidades contemporâneas.
Na perspectiva aqui proposta, a experiência corporal da cidade atua como micro desvio da lógica espetacular, permitindo uma noção mais incorporada de urbanismo e, com ela, a uma percepção mais conseqüente da nossa participação cidadã. A arte, assim, adquire papel crucial na instauração de outras formas, heterogêneas e tensionadoras, de partilha do sensível e de produção de subjetividades, tão necessárias à constituição do espaço público, da esfera pública, como horizonte critico.