vol.1
n. 03_ A cidade como campo ampliado da arte 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

entre[vistas]: Margareth Pereira

entre Salvador – Fortaleza - Rio de Janeiro :: corpocidades encontram-se, dialogam, trocam ‘hipóteses’ sobre cidades imateriais. Casualidades dos encontros também na entrevista deste mês, em que Margareth da Silva Pereira, integrante do comitê científico-artístico do evento corpocidade vêm à Salvador e a  revista Dobra  propõe uma conversa, uma entrevista em que perguntas e respostas não funcionam como variáveis lineares, uma depois a outra, de direções unilaterais, um para o outro. Idas e vindas de falas, que agora fazem sentido em conexões variadas.::.
entrevista por Edu Rocha e Joubert Arrais  
TRANScriação:   por Cacá Fonseca  e Edu Rocha

Margareth cita Montaigne “vivi cidade como se atravessasse séculos” e daí seguimos em busca de seus relatos de vivências, hipóteses e questionamentos:::

[“] Quando você viaja,  quando você se desloca de um lugar  para o outro, você carrega as cidades com você, você leva as cidades com você. Como disse Daniela Brasil, uma pessoa com quem venho conversando muito - e isso já há muitos anos -, a gente leva para nossos destinos, os nossos lugares de origem. Então nós refletimos muito pouco sobre os nossos corpos como cidades. Neste momento aqui em Salvador, em cada situação como esta, tem milhões de cidades sendo conversadas, praticadas, trocadas. Você está me vendo em Salvador, mas você trouxe um pedação de coisa de Fortaleza (1) que eu não sei, entendeu? E eu sou assim síntese de uma série de interações sociais, em diversos tipos de coletividades, e são sínteses transitórias. E como a gente está ainda sob a tirania dessa história material, dessa história excessivamente material você não presta atenção nisso, você não presta atenção nas cidades que circulam, nessas cidades menos visíveis e que são absolutamente presentes, e presentes, sobretudo, nas nossas práticas culturais, na contaminação que possa haver entre elas. Você imagina quantos lugares, eu em meu tempo de vida, eu já atravessei, já vivi e essas cidades já me impregnaram também, impregnaram minha maneira de pensar, impregnaram o tema do nosso seminário, impregnaram o meu corpo e o que meu corpo pode fazer, e como ele faz. Nasci em Cuiabá, antes de Brasília, então nasci numa cidade mínima, 40 mil habitantes, com uma forma de sociabilidade, com uma forma de relação e que era uma capital, embora tivesse só 40 mil habitantes. E porque era uma capital? Porque ela era um lugar onde eu exercitava quando menina, quando criança no meu aprendizado de cidadania, eu cruzava com diferenças o tempo inteiro, entendeu? O fato de ela estar perdida no meio da floresta, cercada de floresta por todo lado, cada um de nós sabia de forma radical o que significava aquela experiência coletiva. Então ali eu podia freqüentar naturalistas, estrangeiros que vinham fazer pesquisas na Amazônia, eu podia brincar de manhã com índios xavantes, borós. Tinha ali uma forma de vida, com irmãzinhas de caridade que estavam ainda com o século XIX na cabeça, eu com essa minha cidadezinha eu vivi – para fazer um paralelo com o tema da Rosa(2), que nós discutimos hoje – eu vivi essa cidadezinha como Foucault descreve as cidades européias de antes do século XVIII. Os loucos andavam na rua, eles não eram presos, não tinha hospital, não tinha manicômio, a gente conhecia, sabíamos quem eram, pessoas que por alguma razão faziam parte do convívio. E aí fui pro Rio de Janeiro, imagina?  O Rio de Janeiro que tinha acabado de deixar de ser capital e agora vivia as reformas urbanas do Carlos Lacerda, duplicação da Avenida Atlântica, a finalização das obras do Carlos Lacerda nos anos 70. Vivi uma outra escala de cidade, aí já entre aspas, uma metrópole, vivi também uma outra experiência, muito, muito aguda para aqueles anos, era possível você conviver com diversos tipos de indivíduos.  Aí fui pra Paris, morei mais outros tantos anos em Paris, outro mergulho no tempo. Aí voltei, morei em são Paulo, eu tenho até medo de falar sobre São Paulo, porque pode ser que seja mal interpretada. Em São Paulo foi onde eu voltei a situações de convívio mais reduzido de todas estas cidades que passei. Em São Paulo, se eu não prestasse muita atenção eu vivia quase como uma comunidade fechada, só de arquitetos, só de arquitetos de esquerda, só de arquitetos de esquerda entre tantos e tantos anos, está entendendo? É uma situação de gueto maior que nas outras circunstâncias que eu vivi. E tudo isso a gente chama cidade. Pelo menos a São Paulo que esteve em meu corpo não foi, não sei se tem a ver com a trajetória de cada um em cada momento, mas a São Paulo que eu freqüentei foi uma São Paulo muito mais comunitária, de comunidades, onde talvez eu tenha ficado muito fechadinha no meu mundo e isso acho que não é uma experiência só minha. Essa situação de estrangeiro, situação de nômade, faz você prestar mais atenção tanto nas coisas visíveis e materiais, quanto nos processos menos evidentes, menos imediatos e portanto mais complexos.

Aqui, Margareth se refere ao nomadismo na vivência de diversas cidades, vamos nos apropriar dessa idéia para pensar os nomadismos a partir das permeabilidades dos campos de conhecimento que estamos explorando.::.

Eu acho que esse diálogo dança, arquitetura, música, arquitetura, minha expectativa é que eles sejam muito férteis. Pelo menos da ótica da gente colocar no campo da arquitetura e do urbanismo, de onde eu imagino as coisas. Porque a dança e a música trabalham com o instante, com a presentificação, é impossível você trabalhar com a dança e com a música e não prestar atenção no movimento. E os arquitetos e urbanistas, vamos dizer que de Bramante pra cá, ou que de Michelangelo pra cá, ou de Borromini, ou que de Bernini pra cá, a maior parte dos arquitetos estão se esquecendo disso, que arquitetura, que urbanismo, que o gesto arquitetural, que o gesto de resposta, uma proposta urbanística, ele tem que atender a corpos em movimento. Hoje, é muito difícil que os arquitetos pensem que eles estão projetando para corpos em movimento. Talvez quando eles projetem uma escada, talvez eles pensem nisso. Talvez. O próprio pensamento de uma escada virou um problema funcional, subir de um pavimento pro outro. Uma exceção disso é Lina, que obriga a gente a pensar o que é ascender, o que é descender, e isso na poética dela é uma coisa muito forte [...] A dança pode enriquecer muito a gente como arquiteto porque como dança cria o corpo, a música cria o som. Essas experimentações dentro destes campos podem ajudar muito a gente como arquiteto, qual é o lugar perceptível para dança? É o sujeito, é o corpo e queira ou não queira é dali que ele parte. Agora nós arquitetos, nós estamos construindo cidades sem corpo, o corpo está ausente, o corpo do próprio projetista. A coisa mais difícil é você colocar o corpo do seu aluno na ponta do lápis quando ele desenha.

A partir da relação das artes com o corpo, Margareth afirma a necessidade do entendimento da arquitetura e do urbanismo enquanto arte pública .::

É um absurdo que um arquiteto urbanista estude muito sobre arte pública e não pense que arquitetura e urbanismo são arte pública por excelência. Os arquitetos estão descobrindo de novo que a arquitetura é uma arte pública e que o urbanismo é uma arte pública, através da contribuição dos artistas plásticos, eles tinham esquecido. Se não fosse o debate que os artistas plásticos fizeram pra tirar as artes do museu e colocar as artes nas ruas, talvez os arquitetos não tivessem nem começado a se ligar que a arquitetura e o urbanismo são artes públicas por excelência.

A arquitetura e o urbanismo distantes de sua dimensão artística exacerbam sua condição material, ação que Margareth reflete como sendo um problema da cultura contemporânea excessivamente visual.::

a cultura privilegia certos sentidos em relação a outros, é uma cultura absolutamente visual, por exemplo, todos os instrumentos que um urbanista utiliza para fazer um diagnóstico são instrumentos visuais; durante milênios os homens construíram cidades sem planta baixa, sem cortes, não necessariamente com esses instrumentos de representação gráfica do sensível, da experiência coletiva que nós estamos tendo aqui, isso é um modo de pensar e eu venho, então, tentando compreender. Isso é um problema conceitual. [...] Eu acho que o urbanismo no momento contemporâneo ainda presta muito pouca atenção a essas cidades imateriais. A formação do urbanista hoje privilegia, como nos anos 50, 60, 80, embora a gente venha fazendo uma crítica do campo disciplinar e de nossas próprias práticas, nós continuamos excessivamente atentos a dimensão material da cidade e nós não estamos atentos a processos, a ritmos, a fluxos, a mentalidades, a formas de experiência. Eu acho que isso é uma lacuna, um impedimento que vem esvaziando até mesmo a dimensão mais bonita da pratica do urbanista, o seu diálogo com relação ao campo onde ele vai atuar. Os urbanistas hoje a maior parte das vezes estão preocupados com tipologias, tipo de espaços públicos, tipologias cada vez mais complexas, estão preocupados com dimensionamentos, comprimentos, larguras, os números entendidos inclusive como absolutos. [...] Do mesmo jeito que a gente tem uma idéia de homem-tipo no Movimento Moderno, a gente tem a idéia, me parece, de cidade-tipo, de procedimento-tipo, os modelos. Quando nós vamos abandonar a idéia de pensar o mundo sob a forma de paradigmas? Quando é que a gente vai aceitar a nossa ação no mundo de uma forma mais contingente? [...] Tem duas coisas na profissão do arquiteto que são muito complicadas, sua ação afirmativa, o arquiteto pela natureza da sua formação e de sua ação, sua ação no mundo é uma ação de síntese, é uma ação afirmativa; você constrói para mais ou menos durar, você tem que expandir a temporalidade imediata, prever algo. Eu acho que isso é um enorme desafio, não há receita pra isso, mas se nós arquitetos urbanistas começássemos a prestar um pouquinho mais de atenção sobre isso, talvez agente agisse da mesma maneira propositiva, mas agíssemos menos movidos por certezas, em relação ao nosso próprio gesto, e agiríamos mais movidos pela idéia de hipóteses. Eu acho que a arquitetura tem muito a ganhar se o arquiteto começar a pensar que o seu gesto arquitetônico ou urbanístico é uma hipótese para aquela situação que ele foi chamado para interferir [...] Eu venho aprendendo como manter a utopia sem ser utopista, ou como manter a pulsão crítica, a força, o ímpetus crítico sem a esperança de ver as coisas mudarem, necessariamente. Porque uma das coisas que eu mais descobri é como demora para que certas idéias, embora formuladas e dominadas, claramente explicitadas do ponto de vista mental, quanto tempo elas demoram para serem vivências, experiências [...] Eu, enquanto docente de arquitetura e urbanismo, acredito que é possível você formar um urbanista mais sensível, menos ingênuo em relação a si próprio. Um urbanista que duvide, que saiba questionar, o que não significa que ele não vai propor, mas sim que ele tenha a capacidade de discutir o impacto de seus próprios projetos [...] Eu acredito nas coisas, acredito, por exemplo, que vai ser bom a gente estar junto em outubro  discutindo isso tudo, agora qual a positividade disso? Qual a aplicação? É uma palavra que eu odeio, e que está embutida em todas as nossas faculdades de arquitetura e urbanismo e todos nossos programas de pós-graduação, os alunos querem fazer coisas imediatamente aplicáveis. E quanto mais você tem uma cabeça instrumental como essa, menos eu acredito na eficiência. Eu acredito, por exemplo, na eficiência da especulação, acredito nesse entre, acredito nessa surpresa dessa palavra que é do outro também.

Margareth deixa um registro de sua ‘vivência especulativa’ na cidade, nos revela uma surpresa, um objeto-morada-corpo e nos convida ao exercício desta atenção não instrumentalizada .:.: 

Outro dia eu estava pensando que uma das coisas mais bonitas é a rede. Eu vim aqui na casa da Paola(3) e olhei pela janela, tinham várias varandinhas com rede. Eu falei, meu Deus, olha como está ficando tudo ruim, nós estamos perdendo as redes. Eu dormi quando criança, eu dormia em rede lá naquela cidade que eu contei para vocês, sobretudo quando a gente ia para a fazenda, que eram situações ainda mais absolutas,  de meia dúzia de gente cercada de mato por todos os lados. A rede é tão flexível, põe a rede nas costas e vai andando.  Então é uma morada inteira, uma casa inteira e se molda pelo corpo. Não tem nada de intangível, quer dizer é uma resposta bem ali para as necessidades que a gente tem de proteção, de acomodação. Tantas inteligências pensando, tantas possibilidades que a gente há de se mover em outra direção, que não de cidades tão inóspitas, cidades de relações humanas tão agressivas para todos os lados envolvidos.

Margareth finaliza nossa conversa esclarecendo a idéia central do seu texto, que a [dobra] disponibiliza nesta edição para download.

Tento mostrar nesse texto, como a idéia de monumento pressupõe a idéia de que ele cumpre o papel de rememorar coisas. Então a memória é uma exterioridade, o monumento é que rememora e não o corpo. Essa é a lógica européia, como ela se desenvolveu do Renascimento pra cá. No texto, eu defendo que, pelas contingências da nossa própria história, a gente teve que exercitar uma outra modalidade de memória e que para nós a nossa memória mais aguda está inscrita no nosso corpo. Nós arquitetos temos uma relação problemática com a construção dos objetos, porque tanto a gente pode dar muita potência a eles, como a gente pode retirar deles qualquer importância. [”]

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(1) Margareth neste momento se refere ao Joubert, que morou grande parte de sua vida em Fortaleza.

(2) Rosa Ribeiro é mestranda em Urbanismo pela UFBA, com enfoque na emergência do Urbanismo enquanto tecnologia política do corpo, a partir da obra de Foucault. Participa do Corpo Editorial da Revista Dobra.

(3) Paola Berenstein Jacques, assim como Margareth, é membro do comitê científico do Corpocidade