vol.1
n. 03_ A cidade como campo ampliado da arte 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

Lona amarela:: tem GIA no espaço urbano

por cacá fonseca e edu rocha
relatos de um fim de semana fisgados pelo
QG do GIA no MAM _ Solar do Unhão_ Salvador

Palavras como ocupação, experiência e público quase esvaziadas de sentido, diante de uma repetição assoladora e descomprometida das implicações sobre o que se vive, se sente e se experimenta, entraram num processo de pulsação de sentidos, de emergência de outros significados, de encontro com algumas idéias formuladas por teóricos da cotidianidade, da experiência de ocupar o espaço urbano. Entre os dias 12 e 25 de maio, o GIA (Grupo de Interferência Ambiental) se apropriou da Igrejinha do MAM, em Salvador, e nela montou o seu “local de trabalho, interação e encontro” (1). 14 dias vivenciados por seis artistas juntos, fazendo arte, trabalhando, “desde a manhã até algumas horas depois do horário comercial do museu...”, tendo como premissa, “a gente se vira com o que tem”. Para montar o QG, os artistas acrescentaram ao seu acervo material – coletado pelo grupo nos sete anos de sua existência – um acervo humano, vindo ali do entorno, ávido por novas experiências. O resultado desta mistura foi a criação de um “espaço relacional”, elaborado no processo de se apropriar daquela instituição pública de arte a partir da vida que por ali transita cotidianamente. “Foi só montar uma mesa de sinuca e de totó aí na frente que o pessoal da Gamboa e do Unhão começou a aparecer, aí viram que podiam ficar...”

A descida da ladeira de acesso ao Solar do Unhão – Museu de Arte Moderna da Bahia, trajeto sempre  perturbado pela experiência estética daquele telhado desbotado, manchado da umidade do tempo foi preenchido por outra tonalidade, um amarelo-ouro translúcido,  e por entre essa luminosidade amarela um amontoado de pessoas, de burburinhos, de bola, de furadeira, de garrafas pets também translúcidas noutra tonalidade. Imediatamente aquela cena incorporava as tonalidades da alegria cotidiana das aquarelas de Lina(2), cores em água e papel da vida em completo movimento, a arquitetura incorpora o jogo, a correria, a sonoridade estridente de um dia de sol repleto de crianças ansiosas por um espaço na mesa de totó, rodeada de 4 jogadores, um juiz e uns tantos torcedores, que opinam intensamente nas jogadas.

E à medida que adentrávamos o MAM, a lona amarela operava como uma espécie de mapa, um novo mapa sobre aquela arquitetura, o mapa do GIA sobre o branco, vermelho e pedra de Lina. No pátio percebemos que a ambiência criada pela lona amarela extrapolava a delimitação exata das suas posições, a lona amarela era o furdunço e estava em todo canto, estava debaixo da mesa da bilheteria do cinema, onde a menina com as tampinhas da garrafa pet bebia fábulas de café e construía momentaneamente sua casa, o tampo da mesa funcionava como o telhado, as tampinhas das garrafas como xícaras e seus gestos pareciam  convictos do sabor daquela livre imaginação. Linhas amarelas formavam um confuso emaranhado de amarrações que ligavam a mesa de totó, as mudas de planta dentro das garrafas-vasos, a igrejinha, os postes de iluminação e provocava a mesma sensação de que a lona espraiava-se por toda aquela espacialidade.  O burburinho infantil e arteiro do pátio do MAM é contagiado por outra sonoridade quando entramos na igrejinha e os ruídos de uma casa preenchem nossa experiência ali dentro. Nave principal com pé-direito triplo, rodeada de sacadas de madeira de lei e portas enormes, que a abrem para um corredor (nave lateral) com janelas, de onde se vê a Baía de Todos os Santos, logo ali.. Compondo com o sossego daquela paisagem, uma rede armada e, de frente para uma tv meio fora do ar, uma jovem e uma criança se balançam. Ecoa o ranger do gancho na parede que, somado a canção de ninar cantada no vai e vem da rede, compõem o ambiente tão familiar quanto inusitado.

No final deste corredor lateral, uma escada. Vencido o primeiro lance, o olho alcança o piso, em madeira, do andar superior e se depara com vários corpos deitados no chão, em forma de círculo. No centro, um aparelho de dvd com uma micro-tela, onde o tamanho da legenda do filme nos faz entender, apesar de superficialmente, o motivo de tamanha voracidade daquelas pessoas sobre aquele aparelho eletrônico. Um pouco mais à frente, mais uma rede armada, essa sem ninguém, e no fundo dois degraus nos elevam ao coro da capela. Piso e guarda-corpo de madeira, além de uma visão privilegiada do altar, onde está instalado o “cérebro” do QG do GIA, coletivo de seis artistas soteropolitanos que invadiu a capela do MAM de Salvador com a intenção de habitá-la.

E a casa não se estabiliza, na igrejinha ora ou outra se configura o boteco de esquina, e a sonoridade do Sorriso Maroto(3) que toca em um dvd compõe ritmicamente casa e bar, onde a mesa de sinuca centraliza a atenção do jogo entre os seguranças do MAM, não se sabe se em horário de trabalho ou de descanso, função segurança-jogador que com a mesma seriedade numa ou noutra organizou o “primeiro torneio open de sinuca dos funcionários do MAM” com direito à troféu e cervejada. E de novo o furdunço amarelo do GIA, na sonoridade da bateria do samba ao vivo, com seguranças-sinuqueiros-artistas-batuqueiros-visitantes-dançadores, toda uma sorte de vozes em coro na empreitada do samba do bar-casa-igreja-QG do GIA.

No lugar do altar da igreja, um escritório montado. Dois computadores, uma estante com livros e alguns adornos, um birô desorganizado, um ventilador, uma lousa branca com alguns escritos, uma cadeira confortável e atrás dela um “entulho”, onde estão jogados as ferramentas e as sobras dos materiais utilizados, que, a qualquer momento, podem ser reutilizados em alguma outra ação. Do ambiente do escritório, se vê um espaço em movimento que se constrói, constantemente, na relação estabelecida com o seu entorno urbano. Uma arte em processo, que encontra na “estética do cotidiano, da precariedade” um caminho criativo de uma ação artística na cidade, que se apropria de um espaço público, garantindo nele a possibilidade do desejo de qualquer um se expressar.

O movimento se perpetua e o bar-casa-igreja-QG não se estabiliza, a mesa de sinuca sai para a varanda-lona-amarela da fachada principal da igrejinha e na nave-mãe se espalham esteiras e almofadas e ali se forma um bate papo em torno de questões sobre arte contemporânea, com universitários, passantes para o semanal Jazz no MAM, artistas plásticos, professores, crianças... De repente, um cheiro do café instaura novamente a casa, cheiro aglutinador de apreciadores daqueles encontros de cozinha que numa situação tão deslocada causa espanto entre os visitantes que não compreendem onde começa e onde termina os limites da “exposição artística”.No fundo esquerdo da igreja estava  improvisada a cozinha. Uma mesa, um fogão de duas bocas, um filtro de barro, uma cafeteira sem cabo, um regador de plantas cheio d’água, uma pia sem torneira...   com o café preparado da água de regador e levemente misturado no açúcar com um parafuso que por ali se encontrava perdido,  entendemos que seja casa, seja bar,  o que perpassa a experiência daquele ambiente  é o cotidiano, do churrasco, dos torneio de sinuca, do samba, da oficina de engenhosidades, da sala de televisão, da bronca com as crianças, um cotidiano que flexibiliza as tão corriqueiras formatações dos espaços institucionais da arte.  

Com o lema “acredite nas suas ações!” faça, e “observe as reações” o GIA pendurou sua lona amarela por todo o MAM e pôde observar – não só eles como todos que por ali passaram – a incorporação daquele espaço pela cidade que o rodeia, borrando os limites que separam aquela instituição artística dos seus vizinhos, moradores de um casario precário, que, assim como o GIA, se viram  com o que tem.

[Des]organizando isso tudo, estavam os seis – Cristiano Píton, Everton Santos, Ludmila Brito, Mark Dayves, Pedro Mariguella e Tiago Ribeiro –, martelando prego na madeira, arrastando caixa de som, pregando papéis nas paredes, construindo um flutuador(4) e um carrinho ambulante,  varrendo o chão, instalando os fios de um projetor, engendrando mais uma gambiarra... todos em ação... numa arte que no cotidiano se constrói e  dilata os horizontes da cidade pela possibilidade de ser ocupada - experienciada.


(1) Todos os trechos em itálico são referentes às falas e escritos que capturamos dos membros do GIA nos nossos encontros.

(2) Lina Bo Bardi, arquiteta responsável pelo projeto de restauração e transformação do espaço do Solar do Unhão no museu de arte moderna da Bahia

(3) Banda de pagode

(4) Enquanto estava ocupando o MAM, o GIA decidiu construir um flutuador para a Baía de Todos os Santos, que seria uma embarcação construída com garrafas pet onde as pessoas poderão se reunir no espaço público marítimo. O flutuador deve ser usado para servir de zona para realização de diferentes desejos”. No último dia da ocupação, o GIA ancorou esta “zona” entre o MAM e a Gamboa.