vol.1
n. 05_ modos de subjetivação na cidade 
vol.1
n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

entrevista : : Robert Pechman, Luis Antônio Batista  e  Eliana Kuster

As reflexões engendradas nesta entrevista  por Robert Pechman [RP] , Luis Antônio Batista [LA]   e  Eliana Kuster [EK]  penetram nas esferas da subjetivação enquanto processo fundante da nossa condição singular e coletiva  na vivência urbana e  operam  interferências  substanciais nas nossas aproximações entre  corpocidade  e seus modos de subjetivação.

[RE] dobra:  Qual o sentido da expressão corpocidade para o semear, parir, cheirar, plantar e colher outros modos de subjetivação na e da cidade? 

[EK] Começo a pensar nesta questão lembrando a filósofa alemã Hannah Arendt. Ela dizia que a função do âmbito público é dar visibilidade aos acontecimentos humanos, fornecendo-lhes um espaço no qual todos possam ser vistos e ouvidos e revelar, mediante a palavra e a ação, quem eles são. Esta visibilidade em público, portanto, torna-se constitutiva da realidade, cujo engendramento depende da existência de uma esfera pública que possibilite lançar luz sobre processos que, caso contrário, permaneceriam ocultos. Constituímo-nos, individualmente, em um mundo compartilhado com outros indivíduos. Sob essa ótica, a cidade é o local por excelência do desenvolvimento dessa construção. É ela que, com suas infinitas possibilidades de acontecimentos fornece a arena para as múltiplas possibilidades do ‘ser’. O que podemos constatar contemporaneamente, porém, é uma fragmentação na coesão dessa esfera pública e uma crescente segmentação da vida citadina entre categorias diversas, em um processo que o sociólogo Michel Maffesoli chama de ‘tribalização’. Ora, se os espaços públicos vão sendo esvaziados e a cidade aos poucos deixa de ser o espaço da diversidade, dividida que vai sendo por categorias religiosas, étnicas, econômicas e culturais, os acordos de civilidade, que buscavam garantir a convivência entre os diversos segmentos sociais que ali se expressavam, têm colocada em xeque a sua razão de existir. A este processo de segmentação, portanto, corresponde também um progressivo abandono do social e da urbanidade. Uma decadência do sentido de ‘cidade’.

Assim, na medida em que se restringem as esferas de reconhecimento do próximo e se ampliam as características necessárias para que o outro seja admitido como semelhante, é diminuída a possibilidade de construção daquilo que Hannah Arendt chamaria de ‘poder’, ou seja, a capacidade da ação conjunta e acordada entre o coletivo - composto por pessoas que se acreditam e se reconhecem partes de um conjunto. Esse conjunto outrora coeso - embora travasse os inevitáveis embates e disputas, muitas vezes longas e violentas - dá lugar a um panorama esfacelado composto por partes desagregadas. Manifestações desta desagregação são freqüentes se analisarmos as artes e a mídia contemporâneas.

[RP] Talvez a importância da expressão Corpocidade possa ser verificada ali onde está se constituindo a reflexão sobre a cidade.Seja no “discurso competente”das ciências da cidade( o urbanismo, o planejamento urbano, a sociologia, a arquitetura), seja naquelas práticas que tem a cidade como objeto de intervenção. As cidades são qualificadas, contemporaneamente, segundo sua vocação para atrair riquezas. Parece ser que a vocação da cidade para ser o lugar do convívio, da  urbanidade, da civilização,da cultura, da esperança, da criação e do ‘amor-mundi’ é relegada a um segundo plano, coisa da ordem do supérfluo.Nesse sentido parece ser que a cidade é tomada como a possibilidade do pão nosso de cada dia onde a preocupação limite é com as relações de produção, nunca com a produção de relações. Trata-se do corpo de uma cidade que é preciso alimentar, fazer fluir os fluxos, medicalizar e, como consolação, fazer experimentar algum gozo. Tal representação da vida urbana tolhe qualquer possibilidade de se perceber a cidade além de sua mineralidade. Ou seja, diante de tal premência material tudo aquilo que é da ordem dos desejos da cidade  e  dos desejos na cidade é relegado ao plano do indivíduo, nunca do coletivo. Desta forma à cidade é negada toda qualidade desejante, sendo ela revestida de uma suposta quantidade necessária. Assim, o que a cidade ganha em robustez material perde em fragilidade corporal.  A expressão corpocidade recupera, portanto, a dimensão do desejo de cidade, evocando o mundo de afetos que se esconde nesse corpo e sugerindo que é a partir da legitimação desse desejo que outros modos de subjetivação podem se fazer valer. 

[RE] dobra:  Novas formas de urbanidade podem revelar tanto a perversidade quanto a generosidade do socius urbano, tanto o individualismo quanto a sociabilidade em suas faces mais potentes. A cidade não cheira somente  perfumes da negação, sequer  semeia somente liames de solidariedade, mas implica a tensão contínua destes enredamentos.  Nesta equação, em nada absoluta, como pensar novas formas de urbanidade a partir da escala do corpo?

[EK] A partir desta questão, é possível pensarmos a respeito da forma como a presença constante de fluxos, aceleração e movimento de coisas, pessoas e acontecimentos, bem como a intensa pulverização de referências, afetam a construção do ‘estar no mundo’. Seria possível, ainda hoje, pensarmos na possibilidade de uma ‘segurança ontológica’ para a existência? A questão que pode ser desenvolvida a partir daí é: em um mundo que se encontra em constante mutação é possível, ainda, a formação de referenciais sólidos que funcionem como balizadores para este ‘estar no mundo’, para esta ‘urbanidade’? Esta não é uma questão nova. Durkheim, Simmel e vários outros autores, ao analisarem a modernidade, já se debruçaram sobre ela, colocando-a em pauta como um dos principais obstáculos no estabelecimento de referenciais e limites estáveis no mundo moderno. A ausência cada vez maior de tais referenciais, que possam funcionar como balizadores para a observação do mundo, traz uma fluidez nas relações, que dificulta cada vez mais a formação de laços consistentes. Se a duração dos vínculos é que permite medir sua qualidade, é inevitável a observação de que a qualidade dos vínculos contemporâneos encontra-se cada vez mais depauperada, já que não há um investimento real em seu desenvolvimento consistente. A autonomia crescente traz, atrelada a si, um igualmente crescente isolamento individual. É, a partir desse esvaziamento das questões que se referem à esfera pública, a partir mesmo, desse âmbito público da vida que deixa de funcionar como referencial de valores, que, acredito, podemos pensar sobre o homem contemporâneo.

[RE] dobra: Quando vcs afirmam que 'a cidade é a possibilidade do indivíduo ser', evidencia-se a idéia de subjetivação da sessão, ou seja, de algo que se particulariza na existência citadina.  O que está vinculado a um corpo cotidiano que acorda, caminha, passeia, cai, levanta, conversa, pula, silencia, enfim, que está em ação na pela cidade, rotineira e estrategicamente. Como, então, pensar o ato de subjetivação, de onde podem emergir subjetividades citadinas, quando temos o corpo como objeto de culto, manipulação, privatização e publicidade, corriqueiramente destituído de sentidos?

[EK] Não diria que o corpo contemporâneo seja corriqueiramente destituído de sentidos, e sim que, talvez, sentidos outros estejam lhe sendo impingidos, impedindo que os seus sentidos próprios se expressem adequadamente. Quando pensamos na publicidade e na gama de produtos que ela oferece, isso se torna bem claro. Temos produtos que prometem desodorizar o corpo de seus diversos cheiros naturais, vitaminas que querem suprir um déficit que porventura possamos ter na nossa imunização, equipamentos que prometem esculpir as nossas formas naquelas consideradas ideais, enfim, toda uma variedade de ofertas que, apropriam-se de certa padronização de anseios – antes individuais – transformando-os em espécies de sintomas. Tentam assim, falar à subjetividade, oferecendo-lhe possibilidades de contornos que a insiram em certo padrão. Ou seja, buscando formatá-la em algo, por assim dizer, ‘objetivo’, que obedeça a tendências coletivas. Por outro lado, temos o florescimento de inúmeras patologias de caráter fortemente individual, como os distúrbios alimentares.
A cidade, mais que palco destes acontecimentos, é a própria possibilidade deste individuo encontrar uma forma de ‘estar no mundo’, com sua multiplicidade de possibilidades e acontecimentos oferecendo a oportunidade do equacionamento entre subjetividades e objetividades, mundo individual e convivência coletiva, virtualidades e concretudes.

[LA] A POLÌTICA DAS NUVENS:

Este  texto objetiva condensar as minhas respostas `as perguntas  propostas pela organização do CORPOCIDADE. Inspirado na prosa poética O Estrangeiro, de Charles Baudelaire, apresento políticas do corpo e do movimento da subjetividade  na cidade através da imagem das nuvens, que nada teria de romântica, ou alheia ao mundo da imanência. Na  prosa de Baudelaire um estrangeiro chega a uma cidade e após várias perguntas feitas por um morador sobre o que  mais  o  fascina  ele responde  que seriam as nuvens.
A POLÌTICA DAS NUVENS é um fragmento do ensaio “ Tartarugas e Vira-latas  em movimento. Políticas da  mobilidade na cidade” , ainda não publicado.  Neste ensaio é discutido as contribuições da montagem cinematográfica e de literatura  para o estudo das políticas da mobilidade na cidade. A cena descrita no ensaio  me  foi  narrada  pela Psiquiatra Nise da Silveira quando realizava o meu estágio no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, nos anos setenta.

O gavião sobrevoa a jaqueira, mas lá embaixo alguém permanece duro como o muro. Só, no pátio, um homem imóvel veste um uniforme azul. Parece uma grade que congela a paisagem, sabotando o desassossego da cidade. Este homem está no mesmo lugar há vários anos. Quem o vê avalia que nada entra ou sai da sua solidez gradeada. Fora do pátio, olhos arrastam corpos, corpos arrastam olhos, palavras vão e vem, gestos desdobram-se, projéteis se perdem, pessoas se imobilizam e movem-se vivas ou quase mortas. Mas onde ele está nada acontece. O pátio que o acolhe insinua ser uma cidadela vazia, cercada por muralhas indiferentes aos marcos que delimitem o aqui e um fora, pois neste lugar nada passa, nada ultrapassa, nada acontece. O rapaz não fala e não se move, faça chuva ou faça sol. É indefinida a sua idade, o tempo da sua pele confunde-se com o silêncio da hera enraizada no cimento a sua volta. Nuvens acima do telhado do hospício onde ele habita escapam de um desenho único, mas ele não. Dizem que a solidez de seus nervos e músculos encarna a esquizofrenia catatônica. O suposto diagnóstico justifica sua indiferença a tudo e a todos. As nuvens sobre o velho telhado ganham a forma dos encontros com aquilo que as tocam ou as atravessam; tocadas pelo vento, ou por sua ausência, libertam-se do fardo de cristalizarem-se em único desenho. Para o homem duro como o muro, segundo o diagnóstico psiquiátrico, ninguém o perturba, o afeta, ou o impele a ser outro; falta-lhe a curiosidade pelo mundo, a vulnerabilidade para ser contagiado por algo vivo, talvez o próprio mundo. Diz o diagnóstico que o paciente sofre um déficit relacional irreversível; vive só entre dores e fantasias. No hospício do Engenho de Dentro, localizado no subúrbio do Rio de Janeiro, pássaros sobrevoam jaqueiras, nuvens escapam do isolamento, cachorros percorrem o pátio, mas ele mantém-se lá como uma janela fechada que asfixia a cidade, apagando o que ela possui de possível. Muros e nuvens fazem política no subúrbio carioca.

Quando, a cada manhã, levado pelo enfermeiro, o homem duro sai do quarto para o banho de sol, o vira-lata lambe a sua perna catatônica como se o conhecesse há muito tempo. O cão lambe a pele que cheira a remédio, pula, circula à sua frente, late, e o rosto do homem continua o mesmo, impassível. O vira-lata pulguento entra e sai do hospício; ignora muros e grades que sabotem a cidade decretando o seu fim; circula na calçada reta em ziguezague, corre ao lado do saco plástico soprado pelo vento, cheira tudo o que encontra, atravessa o portão do hospício à cata de restos de comida, e pára ao lado do homem de uniforme azul. O cão prenuncia que algo pode acontecer; o diagnóstico de seu parceiro não bloqueia a efusividade de seus atos. Este animal, conhecido por todos do bairro, também faz parte daquele lugar onde nada acontece. O vira-lata pulguento, entre muros e nuvens, parece com a cidade ocupada por um emaranhado de histórias com diferentes intensidades, impedindo-a de conclusão ou de ser fixada em natureza morta.

Certo dia, ao atravessar a rua, o cão foi atropelado por um carro. A notícia chegou ao pátio, e o homem duro começou a dissolver-se, a perder gradativamente o fardo da catatonia. Os músculos das mãos, das pernas, dos pés começaram a descongelar. Nervos amoleciam. O rosto perdia o semblante rijo e, com lentidão, descontraía as linhas da face sem prazer, sem medo, sem tristeza; apenas movia-se com a alegria do gesto despossuído do peso do eu. Nesta metamorfose, o corpo tremia, um tremor que se iniciava nos músculos dos olhos e logo após arrastava-o para fora do pátio. O cão na calçada, atropelado, convocava-o para que alguma coisa fosse feita. O ocorrido na rua percorria os seus nervos, interferindo drasticamente na sina do seu destino catatônico. Pouco a pouco, a imobilidade do diagnóstico transformava-se no peculiar movimento: movia-se saindo de si, desvencilhava-se da solidão do nome escapando da lógica que o definia. Descongelado, sem o peso da imobilidade, iniciava o percurso com outro corpo, produzido pelo acontecimento inesperado. O paciente psiquiátrico era agora inominável. O azul do uniforme se esmaecia, dando lugar a uma cor inclassificável. .Atravessado pela cidade, libertava-se do destino enraizado em seus músculos. O homem móvel abriu sem dificuldade o portão do hospício e foi ao encontro do cão que gemia na calçada, com a pata dianteira ferida – o cão, porém, era muito sagaz; o atropelamento não conseguiu causar-lhe maiores problemas. O homem móvel pegou o cão e levou-o para a enfermaria do hospital. Lá, pediu ao enfermeiro mercúrio cromo e esparadrapo e realizou sozinho o curativo. O vira-lata medicado fugiu para a rua em ziguezague, e o homem, caminhando vivo, contrastava com a paisagem muda a sua volta, seguia em direção ao seu velho posto; um outro corpo o esperava. A força do gesto que recusa a sina do eu era lentamente dissipada.

O acontecimento acabou. Nervos e músculos começam a enrijecer. A identidade dura como muro retorna. Gaviões sobrevoam as jaqueiras. Nuvens sobre o telhado transfiguram-se em inesgotáveis formas, praticando a política dos encontros. Projéteis perdidos atravessam o bairro. O gesto catatônico cumpre a missão do seu destino. No corpo do interno de uniforme azul reverbera a força do lugar onde nada acontece, nada ultrapassa, nada atravessa. O homem móvel que foi perpassado por afetos torna-se gradativamente imóvel. A vida institucionalizada daquele lugar afirma-se apenas como ausência de morte. A alegria do inominável é expurgada daquele corpo. Sai de cena a cidade.

EPÌLOGO

O cão retorna. A parede coberta pela hera silenciosa sombreia a existência vegetal do interno de uniforme azul. A instituição entranhada no espaço sentencia que ali nada acontece, aconteceu ou acontecerá. No espaço institucional do manicômio, hera é hera, nuvem é nuvem, bicho é bicho, morte é morte. A mobilidade do vira-lata continua subvertendo o tempo e o espaço da lógica manicomial. O movimento descontínuo do ziguezague anuncia que algo sucederá, interrompendo o silêncio e o tempo contínuo dos vegetais. No hospital do Engenho de Dentro, o vai e vem do animal ao lado do homem duro como o muro prenuncia que a vida se desinstitucionaliza através do desdobrar do gesto que recusa o fardo da sua natureza. O desassossego de uma outra cidade entra em cena. Sobre os limites do velho hospício, o movimento das nuvens as transfigura em formas inesgotáveis, geradas do encontro entre díspares modalidades de vida. Ar, vento, água, matérias que se atravessam, ausência ou presença de ar, compõem este encontro apresentando-nos a fúria do inominável, como no cinema ou na literatura.

 Na cidade visível, projéteis precisos vão em direção ao alvo. Grades sabotam um outro mundo por vir. O olho arrasta o corpo na direção do medo. Alguém imóvel espera. O sobe e desce do morro dos que não podem sair persiste. O corpo arrasta o olho na direção da falta. Imagens aceleradas na urbe vazia prosseguem. A rua continua quase morta. Diferenças brilham solitárias para ninguém. A paisagem é congelada em uma única versão. Na urbe invisível, nada está irremediavelmente concluído, porque a barbárie é insustentável. A cidade vive. Entre muros e nuvens, cenas urbanas estão disponíveis para uma próxima montagem. O cinema, a dança e literatura exigem-nos certa urgência.