vol.1
n. 05_ modos de subjetivação na cidade 
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n. 05 _ modos de subjetivação na cidade
 
vol.1
n.4 _ corpografias urbanas  
 
vol.1
n. 3 _ cidade como campo ampliado da arte 
 
vol.1
n. 02 _ cidades imateriais  
 
vol.1
n. 01 _ paisagens do corpo   
   
 

Os jogos dos passos (1)

Júlio Lira (2)

Nos limites deste artigo, pretendo rememorar alguns aspectos vivenciados em uma iniciativa de criar outras relações com a cidade e, especificamente, de refletir sobre o ato de passear como prática estética e autoral. O corte é afetivo: cenas, fotografias, conversas, gestos que me impressionaram.

A proposta chamou-se "Movimentos Improváveis" e pode ser compreendida como um desdobramento de outro projeto realizado, também em parceria com Centro Cultural do Banco do Nordeste (CCBNB) de Fortaleza, há mais de quatro anos, nomeado de "PerCursos Urbanos". De lá para cá, encontramos afinidades com os situacionistas, alem dos grupos e pessoas que se dedicam a explorações urbanas e culturais no cotidiano. Desta vez, como parte da programação para o Agosto da Arte de 2008, promovida pelos CCBNB, a Mediação de Saberes, em conspiração com equipes locais, ofereceu aos moradores de Sousa (PB), Juazeiro do Norte (CE) e Fortaleza (CE), de participar de situações (em geral, passeios) que reposicionassem os participantes em outros lugares afetivos, sociais, culturais, políticos.

Partimos do princípio de que a apropriação e a identificação da cidade no movimento cotidiano não ampliam as possibilidades de interação urbana. Ao contrário, tais propriedades proporcionam o movimento inverso de nos levar para dentro de casa. Logo, as imagens dos cenários públicos confirmam receios e preconceitos como aqueles levantados pela mídia. Deixa-nos cada vez mais distantes das situações de flanerie (flanar, vagar), do andar despreocupado, onde o cidadão – transformado em cidadão-artista – torna-se um leitor da cidade.  

Em Juazeiro do Norte, ao final de uma semana com muitos movimentos (cada um com proposta e nome diferentes), realizamos a abertura de uma exposição com fotografias, áudios e objetos resultantes das situações vivenciadas. Entre as pessoas convidadas para expor, estava D. Maria do Retiro que, em um dos movimentos, recebia as pessoas para falar de suas plantas de um modo muito espiritual. Na exposição, ela recriou um jardim que misturava plantas naturais e artificiais, um anjo em cetim azul, um guarda com quepe na cabeça de "ex-voto" (figuras de madeira ou cera, de cunho religioso e mágico) e uma capela para Santa Luzia feita de bolas de gude.

Antes de chegar em seu vestido branco e elegias florais, as companheiras do abrigo de mendigos de Dona Maria do Retiro ficaram durante horas reconhecendo a cidade através das imagens projetadas ou nas fotografias em exposição. Esta possibilidade de diálogo entre culturas, em lugar inventado, acontecia uma bem vinda naturalidade: ela ocupou o espaço da sala, da mídia, da auto-reflexão como nenhum artista naif faria.

Esta boa vontade para o desconhecido também pôde ser observada quando reunimos para um diálogo, em Fortaleza, duas formas de passeio: um grupo de Le Parkur – prática esportiva de deslocamento pelo espaço urbano, usando habilidades físicas para superar obstáculos – e uma pequena corte de Maracatu – no caso, Maracatu de Fortaleza, distinto do pernambucano pelo movimento corporal e musical de cadências e lamentos. Nesse encontro, vimos um pequeno cerimonial de aproximação desdobrando-se de forma imprevista e deliciosa.

Primeiro, a entrada solene do Maracatu, depois a apresentação das acrobacias dos garotos ao som de heavy metal. Era interessante ver dois grupos tão admirados, parando para ver um ao outro. Quero guardar a imagem das princesas, fora de formação, com suas longas luvas pretas, aplaudindo, elas que sempre são reverenciadas em seus cortejos solenes. Não esquecer também o menino dando saltos com a coroa do porta-estandarte, da cena onde os grupos improvisaram uma apresentação conjunta, ou mesmo quando foi feito o convite para os garotos formarem, para o próximo carnaval, uma ala dentro do maracatu.  Presenciamos um passeio de uma dita sub-cultura em direção à outra.

Liberdade para experiência do corpo é outro tema que estes movimentos colocaram em pauta.  Como a situação, vivenciada por uma artesã, de fazer bonecas ao lado de um ator que se montava como travesti: quando chegou a hora de voltar para casa, queriam ficar. Como ainda outra situação experimentada por espectadores e ator que fizeram das calçadas palco e platéia em passeio ao longo de vários quilômetros da Rua São Pedro, em Juazeiro. A liberdade que estudantes alcançaram utilizando uma roleta para se desgovernar na pequena Sousa ou saindo de casa para conhecer e dançar com os ciganos. Ou como o movimento que uma senhora católica pôde exercer indo a um terreiro de umbanda. Também quando cadeirantes saíram para sinalizar com adesivos a acessibilidade dos espaços para cadeiras de rodas: o lugar social para onde uma cidade vai destinando uma pessoa pode ser de confinamento.

Tais situações revelam diversas práticas de passeios, distintas das inventadas pelo turismo que  servem para reafirmar limites já postos.  Com as experiências citadas, percebe-se que o passear pode vir a ser construído como uma prática alterativa de lugares e roteiros sócio-culturais, como uma reconstituição de textos e imagens urbanas, como a redescoberta do corpo na relação com o diferente.

Em todos os movimentos, construiu-se uma ressemantização dos espaços urbanos. Um dos participantes dos Movimentos Lúdicos (um jogo atualizando o mito do Minotauro  no Beco da Poeira em Fortaleza), ainda com o uniforme do jogo, ao lado de uma cabeça de touro, disse que a memória daquele mercado – lugar do trabalho e do lucro – estaria associada a uma experiência divertida. Os jogos de esconde-esconde, a cabeça de Touro nos corredores, a luta entre as personagens do Teseu e o Minotauro são acontecimentos que já habitam das nossas memórias.  Ressemantização que aconteceu também através da vivência de uma universitária de Juazeiro do Norte, que tinha receio da fama do Retiro, mas ficou deslumbrada com as pessoas e o excesso de vitalidade cultural do bairro. Ou com a experiência de passear com sapatos de palhaço, marcar consultas e resolver coisas do dia a dia, onde mais do que uma expressão o andar é um panfleto apontando mal-estares. Ou quando se caminhou por avenida ou por um shopping ou por um ferro velho ouvindo, ouvindo (respectivamente) um depoimento de uma travesti, uma coletânea de poemas ou um texto tragicômico.

Tudo isso: a reconstrução das imagens da cidade é realizada pelos participantes, que incorporam a qualidade de cidadão-artista ao fazer seus olhares reeditarem o material auditivo que receberam. Pois, além das subjetividades, surgiu o interesse e a mobilização de pessoas e instituições locais para realizarem trabalhos com áudio-trilha, mapeamentos culturais, sinalizações afetivas, etc. Isto nos faz perceber  com mais clareza a sutil emergência nestas cidades de um campo de  pesquisa e expressão.  Um bom é exemplo foi quando, em um dos movimentos, juntamos na capital cearense, um lingüista, um dançarino e um físico para pensar sobre contribuições conceituais de suas linguagens específicas para o passear enquanto prática estética e autoral. Mais um minúsculo avanço realizado neste sentido.  

Meio às experiências e afetos aqui transpostos, a impressão original do projeto parece confirmar-se: quando se movimenta com ganas de experimentar novos e nem sempre confortáveis modos de fazer as coisas, e se existe a inquietude, os desdobramentos terão uma dimensão política. E não precisamos pagar pra ver.   


(1)“Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem lugares”.  A expressão é de Michel  de Certeau, em a Invenção do Cotidiano (1994).

(2)  Júlio Lira, sociólogo, artista visual e escritor, é articulador do coletivo Mediação de Saberes.

Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem lugares.

Michel de Certeau,
em "A Invenção do Cotidiano"

Movimentos Improváveis

Nossos movimentos estão limitados: todos os dias fazemos os mesmos traçados para casa, trabalho ou estudos. As situações que vivemos são também previsíveis e pouco acrescentam à possibilidade da alegria e da poesia se incorporem ao dia a dia. Não percebemos que esforços quase banais podem ser reelaborados, recompostos, agenciados para criar perspectivas para a vida mais desejáveis.

Neste projeto, criamos algumas situações, ou brincadeiras, como poderão chamar outros, que permitem a um cidadão comum, freqüentador do Centro Cultural Banco do Nordeste, perceber sua cidade com renovada curiosidade e até mesmo gerar pequenas alterações em seu funcionamento rotineiro. O leitor encontrará adiante propostas em que participantes são instigados a experimentarem o deslocamento do corpo no espaço como uma potência da expressão humana, da reinvenção cotidiana da cidade e do universo.

O projeto Movimentos Improváveis oferece situações e passeios onde os participantes, na qualidade de cidadãos-artistas, terão a oportunidade de andar, olhar, conversar, pesquisar, gravar depoimentos, fotografar. E tirar da invisibilidade territórios da alma. É nesta recomposição, com ferramentas de uma psicogeografia, que a cidade é alcançável e passível de ser apropriada, capturada e revertida. De cada passeio surgirão textos, fotos, imagens que alimentarão um arquivo a ser utilizado na construção de mapas afetivos de Sousa, Juazeiro e Fortaleza.

Quando se movimenta com ganas de experimentar novos e nem sempre confortáveis modos de fazer as coisas e se existe a inquietude os desdobramentos terão sempre uma dimensão política contundente. Bom proveito.

Movimentos Improváveis

Proposição: Mediação de Saberes
Concepção e Direção: Júlio Lira
Produção e conspiração: Ayla Andrade, Mônica Batista, Leo Dantas, Márcio Moraes
Indicações e Conspirações específicas: Duda Casimiro, Rosa Lins, Ednaldo Ferreira (Movimento pelo Comércio), Mária de Fátima (Movimentos Cadeirantes) César Nóbrega (Movimentos da Criação), Jorge Cavalcante (Movimentos resistentes), Jefferson Pires (Movimentos pela água e pela dor) Tinto Marques (Movimentos Modernistas).
Edição digital e publicação virtual: Artur Cordeiro, Benedito Viriato,  João Heriberto.
Pesquisa para audiotrilhas e sarau: Jefferson Pires, Robson Mota, Benedito Viriato, João Heriberto, Leo Dantas, Jorge Cavalcante
Audioatores: Eugênia Siebra e Gil Brandão
Seleção de textos literários: Diego Vinhas, Emanoel Nogueira, Renato Mazzini
Adereços: Marcolete
Referências culturais: Jardineira Dona Maria do Retiro, GALOSC, Comunidade Cigana de Sousa, Dona Maria das Bonecas
Agradecimentos: SESC Juazeiro, Dr. Walter Barbosa César
Ao longo dos processos criativos outros nomes serão creditados.
  

Movimentos em Fortaleza - CE
Inscrições: A partir do dia 26 de agosto, na recepção do CCBNB

Movimentos pelo corpo cotidiano

Data: terça, 26 de agosto
Horário: 19h às 21h

O maracatu e Le parkour podem ser entendidos como práticas estéticas relacionadas ao ato de passear, onde o corpo e o espaço são articulados como forma de discurso sobre o mundo. A proposta é por em diálogo singularidades como ritmo, velocidade, repertório, origens para refletir sobre a reinvenção cotidiana do corpo. Pequenos passeios e conversas no pólo de lazer da Sgt. Hermínio. Participação aberta

Movimentos cadeirantes

Data: quarta, 27 de agosto
Horário: 10h às 18h

Cinco cadeiras de roda são colocadas à disposição dos usuários do CCBNB para que possam circular pelo centro da cidade, propiciando uma situação de empatia com os cadeirantes. Também se pretende criar um lugar privilegiado para observação de temas como acessibilidade e preconceito. Participação aberta

Movimentos pela sorte

Data: quarta, 27 de agosto
Horário: 18h às 20h30

Divididos em dois grupos, o primeiro irá passear e conversar com um vendedor de totolec. Ao segundo grupo cabe um vendedor de seguros. Mais tarde todos se reunirão tendo um filósofo como mediador de uma conversa sobre sorte, probabilidade, segurança, oportunidade, enfim movimentos em direção a pontos de encontro da imaginação com a realidade. Participação aberta

Movimentos centrípetos

Data: quinta, 28 de agosto
Horário: 15h às 18h

Pessoas previamente escolhidas por nunca terem ido ao centro da cidade e serem de diferentes bairros se encontram, próximo à Praça do Ferreira, em um espaço onde convivem um café e um salão de beleza. A idéia é usufruir dos serviços e dispor da possibilidade de se conhecerem. Depois vão ao CCBNB onde se exibe um vídeo do encontro e falam da vivência. Vagas: 12. Participação aberta no bate-papo

Movimentos lingüísticos

Data: quinta, 28 de agosto
Horário: 19h às 21h30

Passeio para desenvolvimento de conceitos sobre a arte de passear. Após uma exposição de uma proposição de Michel de Certeau (o passeio como expressão e linguagem) um matemático, um lingüista e um profissional da dança coordenarão pequenos passeios onde investigarão que conceitos e repertórios de seus campos de trabalhos podem ser emprestados à prática estética do passear.. Vagas: 12

Movimentos civis

Data: sexta, 29 de agosto
Horário: 15h às 17h
Um passeio por um monumental ferro-velho ouvindo com o apoio de um tocador de MP3 o dialoga de Fanchou e Lira, personagens da peça Guernica, do autor espanhol Fernando Arrabal, que não se vêem meio aos escombros gerados pela Guerra Civil Espanhola. Interpretação de Eugênia Siebra e Gil Brandão. Participação aberta

Movimentos de escuta

Data: sexta, 29 de agosto
Horário: 19h às 20h30

Caminhar nas imediações do Passeio Público é trespassar por universos inalcançáveis, que só aumentam a sensação de distancia social entre os fortalezenses. Quem são estas mulheres que ganham a vida no comércio do corpo? O que eles têm dizer sobre a cidade, sobre seu cotidiano, sobre as pessoas que conhecem entre paredes, longe das vistas públicas? Nesta proposta, o participante pode caminhar pelas alamedas do passeio ouvindo depoimentos de prostitutas que trabalham na região. Participação aberta

Movimentos mítico-lúdicos

Data: sábado, 30 de agosto
Horário: 15h às 17h

A proposta aqui é atualizar um mito grego criando um jogo que torne a cidade mais lúdica. A narrativa todos conhecem: Para vingar a morte de seu filho, Minos entrou em guerra contra Atenas e venceu. Como desforra ordenou que sete rapazes e sete moças atenienses fossem enviados para serem devorados pelo Minotauro anualmente.  No terceiro ano, Teseu ofereceu-se para matar o monstro. Para construir o jogo, sai o labirinto, entra o Beco da Poeira; os jogadores são 14 fugindo do Minotauro e um Teseu caçador. Vagas: 16