entre[vista]: Ronald Duarte, Glória Ferreira e Guilherme Bueno
Nesta edição des[dobra] pergunta a Ronald Duarte [RD] e a Glória Ferreira [GF] e Guilherme Bueno [GB] sobre a elaboração de cartografias simbólicas no campo das artes, e as relações nela impressas.
Des[dobra]
As cartografias simbólicas de qualquer universo de significações do mundo se redefinem constantemente, alteram suas linhas e contornos nos múltiplos processos de estranhamento, conceituais, sensoriais, políticos, com os quais se enfrentam.
[RD] Primeiro estou enviando duas ações urbanas realizadas em Brasília/2005 "PISANDO EM OVOS" e "TATUAGENS URBANAS" em Nova Iguaçu/2006.
PISANDO EM OVOS
Esplanada dos Ministérios/Brasília-2005
Foto: Sonia Guerra
É na verdade um grande "ebó" (limpeza, comida, oferenda) uma troca, como se diz no Candomblé. Realizada no gramado da Esplanada dos Ministérios em Brasília /outubro de 2005, durante o acontecimento do "Mesalão"... Espécie de interferência urbana mística, mágica, que acontece ao meio dia com a participação de vinte e oito artistas locais inscritos na oficina de Interferência Urbana oferecida durante a Rede Nacional de Artes Visuais - Realizada pela Funarte - Minc
TATUAGENS URBANAS
Nova Iguaçu/ 2006
Foto: Cris Miranda
Também através de oficina de Interferência Urbana pela Rede Nacional de Artes Visuais da Funarte, reúno vários artistas locais da Baixada Fluminense em Nova Iguaçu para pesquisarmos as imagens existentes no arquivo do imaginário popular e conseguimos através do livro de Abdias Nascimentos as imagens de ícones yorubás que foram levados para o local através dos escravos que fugitivos das senzalas e íam para a baixada se esconder.
O Jacaré de duas cabeças que divide o mesmo estômago é o signo das diversidades e da tolerância com as diferenças, sendo uma das tatuagens escolhida para ser impressa por ser Nova Iguaçu uma das cidades mais populosa do Brasil.
Des[dobra]
No campo das artes, como se processa esta nova cartografia simbólica?
[RD] Penso que o processo de construção dessa nova cartografia se dá através de uma constante negociação com o sistema de poder, seja ele político, cultural ou econômico, sendo que essa negociação acontece no limite da ética e com o maior rigor estético possível.
[GF] Distinta da aterritorialidade da escultura e dos projetos modernos de intervenção e de dissolução da arte no espaço público ─ em particular na arquitetura (Mondrian, Malevitch, Léger, entre outros) ─ visando pela expansão dos signos artísticos transformar a realidade, as relações transitivas com o meio ambiente desenvolvidas pela produção artística atual vêm estabelecendo novas cartografias simbólicas da arte.
Criar situações, incorporando criticamente os contextos e ativando múltiplas dimensões espaço temporais, resulta das mutações do lugar da arte, e o redefine. Transformações inseparáveis da mudança operada entre o postulado de uma arte enquanto pesquisa de soluções internas para problemas formais vinculado a antecedentes históricos e o postulado de uma arte que nega justamente categorias preestabelecidas, agenciando enunciações de diversas ordens. Se a arte, desde os anos 60, pode ser qualificada como conceitual (mas que não se resume às formulações da arte conceitual), é pelo fato de privilegiar a concepção sobre a realização, a escolha de suportes e de formas independentemente de categorias, implicando um pensamento sobre os limites da arte e da sua finalidade em um processo de expansão da própria idéia de arte.
Na atual e intrínseca interdependência do trabalho com seu registro, que o inscreve como visibilidade na imagem, a realidade é, de certa maneira, fabricada, inventada, criando possibilidades de se fazer a experiência da situação e a experiência de si mesmo. Na ampliação de seu território de investimento estético, na cidade ou em qualquer parte do mundo, e dilatação das fronteiras de sua circulação, o trabalho conjuga a experiência do sujeito, em sua condição fragmentária, e sua visibilidade como fragmento, recorte espaço temporal. Estabelecendo novas relações entre passado e presente, natureza e cultura, tempo e espaço, incluindo-se aí as circunstâncias históricas do lugar que fundam a significação da obra, instauram outras ligações estéticas e éticas entre o mundo real e o mundo da arte.
[GB] Acho que a idéia de estranhamento é decisiva para pensarmos a arte contemporânea, independente de questões específicas. Diria que, até certo ponto, ela corresponde a um dos eixos mais significativos nas fronteiras e passagens entre a arte moderna e contemporânea. O estranhamento permeia a tônica destes dois momentos. Justamente por colocar a obra de arte (e o conceito de arte) em uma zona de indefinição, ou seja, ele não se prende mais a uma concepção ou modelo de experiência específico. A dúvida sobre o que é arte tem um caráter fundador, ao nos colocar diante de problemas com reverberações, além de artísticas, culturais, sociais e políticas. Explicando: uma vez que a arte ultrapassa a sua correspondência estrita com a estética, que percursos podemos traçar para denominar a "artisiticidade" de algo, a saber, que faculdades garantem a certa proposta ou objeto um estatuto de arte enquanto tal. A resposta mostra-se complexa se considerarmos a presença simultânea de possibilidades antagônicas (isto é o discurso sobre a arte absorver modelos opostos entre si sem refutá-los reciprocamente - uma perda produtiva de unidade).
Se quisermos colocar isto em termos mais próximos ao escopo de nossas discussões em torno do corpocidade, eu assinalaria alguns tópicos. Por exemplo: por quê da dificuldade em enfatizarmos o museu como espaço público? Ou, por outro lado, o quanto a investigação no espaço do cotidiano (a rua, por exemplo) á capaz de nos jogarmos em um terreno de respostas erráticas (aqui eu acho importante mencionar a idéia de perplexidade exposta pelo artista Milton Machado). Tão interessante quanto às respostas obtidas por um trabalho ao enfrentar a "bare town" (desculpem-me o anglicismo inventado) são as não-respostas, uma vez que todas elas explicitam o quanto a diversidade de respostas indagam sobre as ambições da arte (e isto não corresponde nem a demagogia nem a concessões), enquanto possibilidades de problematização do espaço, do sujeito e de suas em termos de objetos que elege como referências. Sob este ponto de vista, a indiferença pode ser tão densa quanto o entusiasmo, posto que ambas espelham opções acerca daquilo que reconhecemos como discussões (e patrimônios) pertinentes a todos. Para mencionar dois casos que colocam diretamente estas reflexões e nos são próximos, eu citaria os trabalhos do Romano e do Ronald Duarte (e, deste último, particularmente "O QUE ROLA VC V". O que podemos pensar a partir das vaias, dos aplausos ou dos olhos arregalados dos transeuntes em termos de ultrapassagem do credo estético como parâmetro universalista da arte? O que é o momento de "não entender" algo no mundo atual?
Des[dobra]
Quais relações são suscitadas pelo corpocidade, enquanto instâncias que se cartografam mutuamente, nesta elaboração de uma nova cartografia simbólica da arte?
[RD] Quanto ao CORPOCIDADE que propõe esta relação constante na construção de significações que acontece neste embate físico da própria existência com o mundo; viver, ver experimentar, conviver com a cidade e suas questões tão evidentes, questionando e indagando o quão estamos realmente envolvidos e quão higiênicos estamos no mundo, falta uma certa ousadia, um mergulho um envolvimento irracional.
[GF] Da nostalgia do corpo como retorno aos seus ritmos vitais, que marcou poéticas como a de Lygia Clark, às atuais modalidades de objetivação artística na era da “eclipse da obra” e da “desocultação” do indivíduo, colocam em questão a legitimação da arte e o deslocamento do papel do artista.
Em um contexto em que a invenção individual ou de um grupo e não normas pré-estabelecidas determinam o fazer artístico, a ligação da obra e da pessoa, característica da “personalização” do artista, determina o que Nathalie Heinich denomina uma arte em “regime de singularidade”. A individualização da atividade artística e a supressão do distanciamento entre o próprio artista e a exteriorização de sua poética indicam as transformações de linguagens decorrentes das modalidades de objetivação da arte, de sua recepção e legitimação.
A presentificação de uma realidade a partir de diversificadas estratégias questiona o dispositivo de procuração, em seu duplo valor de significação autônoma e mediação, ocupado historicamente pela obra de arte.
A implicação do artista “em pessoa” e não por procuração, delegação ou expressão, assim como a solicitação ao espectador para integrar-se à situação, estabelecem, creio, novas inter-relações entre corpo e cidade.
[GB] Permitam-me esboçar uma resposta não respondendo, diria mesmo tergiversando. Por conta de uma pesquisa que fiz aqui no Estado do Rio, presenciei uma situação que já tinha especulado, mas nunca avaliado com rigor. Foi o fato de ver em cidades do "interior" trabalhos de intervenção no espaço urbano (e feitas por artistas "locais"). Em outras palavras: sempre quando falamos em inscrição na cidade, via de regra tenho a impressão d pensarmos menos em cidades do que em metrópoles. Com isto, quero enfatizar o seguinte: se falamos de cartografias simbólicas, e, para reiterar o clichê pensamos em zonas metropolitanas (quando muito periféricas, suburbanas), o que significaria a hipotética metropolização dos espaços "entre" as grandes capitais, a presença destes trabalhos? Seriam monumentos acidentais de potenciais quase-metrópoles, anunciando uma fluidez de espaço que encerra as fronteiras físicas que antes tínhamos entre uma metrópole e outra? (esta questão surgiu-me particularmente por ter visto tal proposta em uma cidade na rota entre Rio e São Paulo; não faço aqui um julgamento de mérito, mas, talvez, de uma problemática que não calculara - a de arte no espaço urbano onde não cogitáramos sua existência mais contundente). Estes trabalhos seriam um prenúncio de metropolização e de uma nova cartografia?
Mudando de assunto e tentando falar diretamente da pergunta, repito um ponto que coloquei anteriormente. Creio que o problema da cartografia se relaciona diretamente ao do estranhamento, ou seja, da criação de zonas de indefinição, nas quais a arte problematiza a si mesma enquanto modelo de experiência de um grupo social. Interessa-me pensar situações em que as pessoas não tenham sido preparadas ou condicionadas para elucidar "isto é arte" e daí negociarem até certos clichês de "comportamento digno" diante de uma obra. Penso como isto amplia as fronteiras da arte, não no sentido de facilitar sua entrada, mas, ao contrário, de que seus atritos e dificuldades (e mesmo incompreensão - que vejo como fundadoras) são elementos decisivos de sua permanente reinvenção.